Uma criança estranha

 Em autoconhecimento, caminho próprio

Tenho uma amiga muito habilidosa em puxar fios antigos de história de dentro da gente.
Estes dias ela me perguntou: “Você nunca foi tímida?”
Eu respondi, distraída “Nunca fui tímida. Eu fui uma menina estranha”.
Imediatamente uma meada inteira de minha infância se revelou.

Eu fui uma criança estranha. E foi estranhamente bom recordar-me disto.

Fui conversadeira desde sempre.  Mas conversava bastante com as ondas do mar, divagava por entre árvores. Como outro amigo já percebeu, meus primeiros escritos eram banhados em minha vivência da natureza, entre quintais de avós, provando folhas de plantas. E as praias um tanto selvagens de Carapebus e Niterói.

Com gente de fora, era mais reservada. Sempre fui a mais nova da classe e era bem desajeitada em fazer amigos nas muitas escolas por que passei. Atravessei muitos recreios sozinha, absorta em meus pensamentos.  E não era triste. Afinal, eu era uma menina estranha mergulhada em minha solidão recheada de sabores.

Aos cinco, morei no Japão e lá brincava sozinha com peças de quebra-cabeças, logo transformadas em personagens nas minhas tramas de faz-de-conta. Levava um bom tempo para dormir, processando imagens dos desenhos animados misturados com histórias vívidas, um filme de fantasia agitando o meu repouso.

Mais tarde, mudei para uma escola bem grande, onde havia dois pátios: o “de areia” e o “de cimento”. Minha melhor amiga da época gostava mais do pátio de cimento. Prontamente abandonei sua companhia para enveredar na busca de conchinhas-tesouro, que coletava para pintar de hidrocor depois. Sem dramas.

E até a adolescência e a mudança para o Rio, fui de poucos amigos e muito atrapalhada nas relações sociais fora do convívio familiar. Mas tropeçava sem sofrimento, como alguém que não se importa em ralar o joelho.

O tempo passou e fui me adaptando.  Quando vi, era uma grande agitadora social e estava sempre no centro de reuniões, festas e invenções coletivas. Desaprendi a ser a garota estranha e solitária, banhada em sonhar acordado.

Até desgastar-me deste papel de alegre e resolver descascar minha pele até ficar em carne viva. Até enveredar pelo Viver Mais Simples e pelo meu caminho próprio.

Agora sinto uma certa urgência de silêncio, pés na terra, banhos de mar e farfalhar de folhas.  Ainda sinto o   magnetismo das pessoas me atraindo para fora, mas percebo a saudade do dentro, rico de histórias e silencioso do outro.

Anseio por mais e mais recolhimento e abstração. Estudar, boiar preguiçosamente em águas tranquilas.  Engolir o salgado de mares nem tanto.

Luto contra as vozes interiores que me incitam á tarefa, á diligência, ao incansável ritmo de realizações e encontros sociais.

Reaprendo a escutar o vazio, o eco dos pensamentos, a observação furtiva do cotidiano.

De repente, reconheço-me.

Ainda sou aquela menina estranha,  apenas andava esquecida de dar asas à minha estranheza.

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Comments
  • Luiz Henrique
    Responder

    Já lendo via Feedly e gostando.
    O pátio de cimento e o pátio de areia encerram toda uma cosmologia…

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