Uma história

 Em caminho próprio
Texto de 19/7/2011, garimpado de arquivos antigos.
Um dia o grito implodiu. Sem ar. Um semi-soluço engasgado em algum lugar do peito.
Este foi o dia em que ela disse: chega!
Não pensava mais. Só sentia um latejamento excruciante, uma vontade de chorar. Não podia contar para ninguém e queria contar a todos.
Uma vida inteira estava sendo recortada, para caber dentro do coração. Mas ela ainda não sabia.
O primeiro passo foi escapar. Um refúgio nas montanhas serviria. Lá, o oxigênio lentamente encontrou passagem.  Lá começou a jornada, nas folhas brancas de um caderno, entre livros e terapias alternativas.
Os primeiros passos foram velozes, aos tropeços. A vida subitamente era preciosa.   Havia possibilidades. Novas. Medos novos também.
Sair da empresa.  Mudar de cidade. Tornar-se pedestre. À tiracolo, um bebê de um ano, uma criança de cinco. Um marido atordoado. Perplexidade.
Pela primeira vez, a enorme cabeça pensante perdia -de lavada- para o coração.
Pensar não havia levado este corpo de cem quilos muito longe.
O tempo passou.  O começo foi quase tradicional, comparado com o que veio depois.
Primeiro caminhar, um regime básico, alguns tratamentos estéticos. Só de respirar, emagreceu dez quilos.
Depois o tempo trouxe possibilidade, disponibilidade. O olhar se aguçou, novos sabores passearam pelo cardápio.
Um trabalho puxou outro trabalho. O dinheiro entrou e saiu.  Mas ela era feliz e voltou a ser escritora.  Escrever reafirmou o destino. Ela, que começara havia tantos anos e deixara a caneta tombar pelo caminho.
Agora escrevia com fúria (ou delicadeza?).
Descobria novas facetas. Descobria novas ferramentas. Conheceu novas pessoas.
E o mundo abriu-se completo.
A caminhada levou a outros viajantes.  Comer melhor, exercitar-se já era insuficiente.
Buscou novos mestres, novas artes.  Repetia “por que não?” e servia-se de mais um bocado da vida.
Já não era reconhecida. Nem como executiva-célebre, nem como figura, tamanha a transformação.
Errou tremendamente.  Gastou como antes. Fez propostas mirabolantes. Comprou materiais desnecessários.
Mas foi assim que aprendeu. Encontrando seu caminho.
Lentamente, pessoas começaram a procurá-la. Fosse pela coragem, fosse pela capacidade de organizar ideias.
Descobriu habilidades inéditas.  Um novo chamado para um novo coração.  Ela, andarilha sem bússola, transitou por labirintos.
Esbarrava em pessoas, o coração pouco a pouco apertado, de novo.
Uma mulher irrompia dentro dela, qual Minerva da cabeça de  Zeus.
A dor era insuportável e assim o parto se fez.
Vinte anos de história viraram passado querido, nostalgia.
Uma vez mais foi incompreendida, mas agora já era um costume.  Seguiu, claudicante rumo a voos e quimeras.
No bolso, vontades frouxas. Na mente, planos mirabolantes. No coração, uma tristeza alegre, uma verdade nascente.
O  chão abriu-se a cada passo. Nada via adiante e tudo via.  Sabia que algo era destino no segundo exato em que este algo se desvelava.
Chorou com gosto e era doce. Sentiu o calor e o frio fustigando uma pele agora curtida.
Ainda era inverno, mas por dentro o verão flamejava.  Estou viva. Gritava em silêncio.
Ninguém queria ouvir. Todos queriam ouvir.
Uma loucura de riso e lágrimas, serena, no entanto.
Era um mar de pérolas, pouco a pouco colhidas.
Estrada de pedras e pés descalços, mas ela prosseguia.
Agora havia respirar. Agora havia horizonte.  Perseguir borboletas era uma forma de viver.  Só para voar com elas, sem pretensão de machucar. Não, machucar tinha sido riscado do dicionário, pelo menos no que diz respeito ao que é voluntário.
Eram poucos iguais a ela. Mas o suficiente para os dias mais escuros.
Gritou mais uma vez. Era lágrima e ânimo, transbordo sereno.
Era doce, era tempero.
Um viver mais simples se avizinhava.  Caminho solitário, mas com fé. Comia o pior pão e deliciava-se.
Devolvia ao mundo somente amor. Às vezes uma febre. Às vezes um carinho solto. Às vezes um abraço tão apertado que sufocava impiedosamente os aflitos.
O amor era tanto que pressionava os ossos. Ela se agigantava, mesmo tão mais delgada.
Os pés cravavam-se na terra-asfalto. Os olhos buscavam o infinito e o infinito era para dentro.
Tudo fazia sentido, mesmo sendo tudo mistério.
Era julho, mas podia ter sido novembro.  Havia mortos, as crianças ainda não sabiam. Mas tudo estava escrito e ela aceitava.
Pela primeira vez em toda uma vida, era suficiente. A busca não lhe custava nada.  A busca fazia parte de todas as coisas, como uma natureza de ser humana.

E cada vez mais humana se tornava. Não sobre-humana, desumana ou super-humana. Assim, humana.  Carne, ossos, futura cinza.  E no  meio de tudo, um coração latejava vermelho e contente.  Era julho. Mas poderia ser qualquer época. Por que tudo era seu tempo agora. Tempo de recomeço.
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