O ovo e a iguana

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Um velho amigo costuma enviar notícias sobre livros e artigos dos temas que me interessam. Uma curadoria luxuosa e sensível sobre luto, vida, poesia e amor.

Hoje mandou a resenha do livro de Daniela Tarazona, “El Animal sobre la Piedra.

A descrição de @_mafentrelivros me assombrou. Parecia resenha de minha biografia, tamanhas coincidências: “Quando a mãe morre, Irma sente um impulso veemente de deixar sua casa e ir à praia. Lá, aos poucos, vai experimentando uma transformação: torna-se réptil, uma iguana ancestral, acolhida pelo calor das pedras (…).

Eu, recém-refugiada num paraíso distante para curar as feridas de minhas perdas dos últimos anos.

No final, a protagonista culmina na gestação de um ovo.

Eu, novamente iniciando estradas, apartamento novo, trabalho pulsando, recomeço.

Em paralelo, outra  velha amiga responde à minha angústia sobre o Covid deixar-me cara a cara com minhas partes que querem viver e querem morrer.

Ela me acolhe, recordando a realidade de que todos somos uma soma de formas morrendo e nascendo a todo instante. A vida é de fato esta sequência evolutiva iguana-ovo-iguana.

E aqui estou eu. Em parte, iguana ancestral que sabe pacientemente aguardar sob o sol, imóvel, enquanto as águas correm dentro e fora.  Apreciadora de silêncios e contemplação. Feiticeira, em comunhão com a natureza e os mistérios.

Em parte, ovo. Um ovo-cornucópia que antevê futuros e sonha transformações.  Albumina-coragem, proteína-esperança.

E entre elas, a sombra inexorável da morte, do fim das coisas. Separações, despedidas, desilusões.  Finais de ciclo infindáveis, abrindo espaço para novos.  E o medo. de braços dados com tudo isso.

A iguana sabe desfrutar destes crepúsculos. O ovo, inocente, aguarda.

Eu, demasiadamente humana, me assusto com sonhos de meus mortos. Eles tão calmos, eu agitada.

Vislumbro os quase cinquenta anos em meio a tantas dúvidas, tantas incertezas, tantos receios.

Muitos temores nascem do cansaço e da solidão“.  Verdade.

A capricorniana em mim galgava montanhas distraída em tarefas, no seu ritmo incansável habitual.

O vírus passou-me uma rasteira.

Subitamente, tempo. Tempo para o ócio, tempo para refletir, tempo para tomar contato.

Os abismos e vales infinitos do meu dentro abriram seus braços.  A finitude é algo tão real. Um dia estamos, outro dia… Não.

Ao mesmo tempo, esta volatilidade iguana-ovo faz a vida um tesouro a ser fruído em todo o seu sumo.

Ancoro-me. No amor a meus filhos, no desejo de fazer as pazes com meu corpo enferrujado, no calor das amizades, na estrela fulgurante do trabalho a serviço.

Confio. Tem mais sede de viver do que medo da morte. Tem mais porvir do que pesar.

Iguana de asas, grávida.

Iguana-Dédalo, amiga do horizonte e das profundezas.

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